Uma análise acerca do Terceiro Setor sob a ótica do Sistema Tributário Nacional

O Terceiro Setor trouxe, em um contexto onde se buscava dar novos contornos ao Estado brasileiro, possibilidade de transformar políticas públicas do Governo numa espécie de colaboração firmada entre a sociedade e o Estado. Deste modo, as entidades que este setor engloba e que ganham a cada dia maior espaço em nosso país, precisam ser analisadas, sobretudo no aspecto tributário. Além das imunidades de natureza constitucional, é necessário também analisar as posteriores alterações que foram trazidas pela Lei n. 9.790, de 23 de março de 1999, conhecida também como Lei do Terceiro Setor.

Contudo, antes de iniciar uma análise mais específica acerca do assunto, é essencial compreender o conceito de Terceiro Setor. Este termo é utilizado com base no chamado Third Sector norte americano, que designa a mesma coisa, no âmbito sociológico: setor formado por organizações que não possuem fins lucrativos, de caráter não governamental. Deste modo, consiste num conjunto que conta com um leque de instituições, sejam elas fundações, entidades de caráter filantrópico, associações, organizações não governamentais (as ONGs), dentre outras.

Tais entidades buscam atuar beneficiando a sociedade, vez que surgem num contexto onde surgem falhas na prestação de serviços por parte do Estado. Diante do reconhecimento de sua insuficiência, o Estado então deu uma forma de suporte a tais entidades, criando imunidades, isenções e incentivos de natureza fiscal. Assim, o Terceiro Setor, também chamado de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), conta com uma colaboração estatal para atingir seus objetivos e assim, suprir as lacunas deixadas por serviços insuficientes à população.

Resta ainda esclarecer o porquê desta classificação enquanto Terceiro Setor. Não é apenas no Brasil, mas em todo o mundo, divide-se a sociedade civil em três extratos das atividades coletivas, os três seguintes setores: o primeiro setor, que é formado pelo Estado, o segundo setor, que consiste nas empresas privadas com atividades econômicas voltadas ao lucro e, por fim, o terceiro setor, que diz respeito a estas entidades sem finalidade lucrativa, sendo estas pessoas jurídicas de direito privado, não estatais e voltadas à satisfação de necessidades de ordem pública.Assim, dentre as variadas espécies de entidades que compõem o Terceiro Setor, podemos destacas as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e as Organizações Não Governamentais (ONGs), que atuam contando com o trabalho voluntário, ou seja, contam com a colaboração de pessoas que trabalham sem ser remuneradas para tanto. Também contam com incentivos do Governo, como veremos a seguir.

Apesar do seu caráter não governamental e sem fins lucrativos, tais entidades, ainda que tais encargos tenham um peso muito menor que aqueles que recaem sobre as empresas do segundo setor possuem obrigações legalmente instituídas, dentre elas, as obrigações de natureza tributária. Tais obrigações existem, apesar das imunidades, isenções e incentivos fiscais conferidos, e devem ser cumpridas de forma rígida, sob pena de enquadrar-se como crime contra a Ordem Tributária.

Em 1999, no contexto posterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, foi editada a Lei n. 9.790, que tratou de firmar o Termo de Parceria e ainda de qualificar as pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos. Esta Lei trouxe um novo parâmetro no que diz respeito a políticas públicas do Governo: agora surgem as políticas públicas de parceria entre Estado e Sociedade Civil, trazendo fortalecimento à sociedade com investimento no Capital de finalidade Social.

Em nosso ordenamento jurídico, consideram-se pessoas jurídicas de direito público ou privado, enquanto integrantes da Administração indireta, compondo fundações e autarquias, assim como as sociedades de economia mista e as empresas públicas. Doutrinariamente, classificam-se essas entidades tidas como de cooperação, em: Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), as prestadoras de serviços sociais autônomos (Sistema “S”: SENAI, SESI, etc.), as organizações sociais e as entidades de apoio (cooperativas, fundações, associações, dentre outras).

Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro essas entidades tem em comum o fato de desempenharem, com o apoio do Governo, serviços não exclusivos a este, muito embora sejam instituídas por pessoas jurídicas de direito privado, mediante algum incentivo por parte do poder público. Em decorrência destes incentivos, estão sujeitas ao controle da Administração Pública. Desta forma, conclui a autora:

[…] instituídas por particulares, desempenham serviços não exclusivos do Estado, porém em colaboração com ele; recebem algum tipo de incentivo do poder público; por estas razões, sujeitam-se a controle da Administração Pública e do Tribunal de Contas. Seu regime jurídico é predominantemente de direito público. Integram o terceiro setor, porque nem se enquadram inteiramente como entidades privadas, nem integram a Administração, direta e indireta.  Incluem-se entre as chamadas organizações não governamentais (ONG’s). Todas essas entidades enquadram-se na expressão entidade paraestatal. (Di Pietro, 2009, p. 413).

Muito embora a CF/88 não traga tal expressão, essas entidades costumam ser intituladas de paraestatais. Mas devemos nos atentarao fato de que tais entes estão no rol das entidades públicas não estatais, sendo públicas por prestarem serviços de interesse público e não estatais por não constituírem nem a administração direta nem indireta. Neste sentido, podemos compreender que essencialmente, o Terceiro Setor goza de independência com relação ao Estado, sendo também chamado de Setor Independente. Deste modo, preceitua Ronaldo Couto que:

[…] qualquer forma de recursovindo dos cofres estatais deve ser através de repasse voluntário, não se afigurando razoável que as pessoas jurídicas integrantes deste setor tenham capacidade tributária ativa (Couto, 2015, p. 128).

Esse autor entende também haver uma distinção destas entidades para as paraestatais, tendo em vista que estas últimas visam a cooperação social mas se dão por parte do Estado sendo financiadas pela capacidade tributária ativa, enquanto as entidades de Terceiro Setor são de iniciativa privada. Assim, uma paraestatal que recebe financiamentos através de tributos, não se submete de forma total à Administração Pública, as organizações provenientes do Terceiro Setor tampouco devem estar em posição de submissão a este, pois, se recebem algum tipo de recurso proveniente dos cofres públicos, isto se dá de forma voluntária. Assim, enquanto certos autores, como Hely Lopes Meirelles consideram as paraestatais como sendo parte da Administração Pública indireta, outros seguem a visão de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, considerando-as de Terceiro Setor. O ponto é que, no Terceiro Setor, ainda que receba recursos públicos, estes não se dão deforma compulsória.

Antes de ser promulgada a Lei n. 9.790/99, as entidades que possuíam tal objetivo de figurar a serviço de utilidade pública, nos termos supramencionados, já gozavam da garantia constitucional das imunidades, conforme disposição do art. 150, inciso VI, alínea “c” da Carta Magna. Este dispositivo traz a vedação à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, de instituírem tributos sobre patrimônio, renda ou serviços provenientes dos partidos políticos e suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores e de instituições educacionais e de assistência social, desde que sem fins lucrativos e conforme os respectivos requisitos legais.

Frise-se também o disposto do art. 146, inciso II, também da CF/88, que afirma ser cabível à Lei Complementar a regulação das limitações ao poder de tributar. Em sequencia, surgiu a Lei Complementar n.104/2001 estabelecendo que, para fazem jus a tal imunidade, as entidades não podem distribuir seu patrimônio ou renda, a qualquer título, bem como trouxe a obrigação de aplicar seus recursos deforma integral no país, com a finalidade de manter seus objetivos institucionais e, por fim, também determinou que a escrituração de suas receitas e despesas deve ser mantida em livros, revestidos de formalidades, para assegurar sua exatidão, sendo que estes requisitos estão listados no CTN, em seu art. 14.

Assim, além das imunidades diretamente relacionadas às suas finalidades, tais entidades fazem jus às imunidades que recaem sobre o patrimônio, como o IPTU, IPVA, ITR, ITCMD e ITBI, os serviços (ISS e ICMS) e a renda (IR). Além do dispositivo constitucional supracitado, também devemos observar o art. 195, §7º da CF/88, que traz a isenção de contribuição às entidades de seguridade social, aquelas beneficentes de assistência social, conforme requisitos legais. Conclui-se que, fazem jus às imunidades, todas aquelas entidades de Terceiro Setor que não possuam fins lucrativos e tangenciem a saúde, a educação e a assistência social.

Já no que diz respeito às isenções, temos as instituições sem fins lucrativos que apresentem natureza filantrópica, recreativa, cultural e/ou cientifica bem como as associações civis prestadoras de serviço para o qual sejam instituídas e à disposição daquele grupo de indivíduos às quais se destinem. A Lei que aborda as isenções aplicáveis é a Lei n. 9.532/97. Esta legislação traz que a isenção se dá de forma total a estas entidades, no que tange ao IR, à CSLL e COFINS.

O art. 15 desta mesma Lei ainda lista os requisitos para a concessão desta isenção. Ou seja, as entidades não podem remunerar, de qualquer forma, seus dirigentes pelos serviços prestados, salvo associações, fundações ou organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, nas quais os dirigentes podem ser remunerados desde que atuem de forma efetiva na gestão executiva e, cumpridos os requisitos legais. Também se faz necessário que tais entidades apliquem de forma integral os seus recursos para desenvolver e manter os objetivos sociais respectivos. Devem manter escrituração completa de suas receitas, nos termos já mencionados anteriormente, além de manterem conservados e em boa ordem, por pelo menos cinco anos da data de emissão, documentos que comprovem a origem de suas receitas, bem como a efetivação de suas despesas ou a realização de atos ou operações que modifiquem sua situação patrimonial. Também devem apresentar, de forma anual, a declaração de seus rendimentos, conforme ato da Secretaria da Receita Federal e não podem apresentar superávit. Caso haja superávit, este deve ser destinado totalmente a manter seus respectivos objetivos sociais. O benefício, contudo, pode ser perdido se as exigências legais forem descumpridas, ou sejam praticadas infrações legais de ordem tributária.

Também são conferidos diversos benefícios fiscais àqueles que contribuem com estas entidades, podendo ser pessoa física ou jurídica.  Deste modo, um indivíduo ou uma empresa, por exemplo, pode deduzir do valor do seu IR doações realizadas em prol de projetos, desde que aprovados em lei de incentivo fiscal.

Cumpre ainda salientar a edição da Lei n. 13.019/2014 que traz normas gerais para parcerias voluntarias estabelecidas pelos entes da Administração Pública Direta e Indireta, buscando uma mútua cooperação para atingir tais finalidades ligadas ao interesse público.

Podemos então concluir que, em um cenário de insuficiência de políticas públicas e de sua efetivação por parte do Estado, houve o fortalecimento do Terceiro Setor e que imunidades, isenções e incentivos fiscais são um reconhecimento da sua necessidade e essencialidade.

Referências:

COUTO, Reinaldo. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2015.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22 ed. São Paulo: Atlas, 2009.

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Sobre a Autora:

Andréia Sousa Vaz.

Advogada graduada pelo Centro Universitário Jorge Amado (UniJorge) e pós-graduanda em Direito Tributário pela PUC Minas.

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