O Jeitinho brasileiro e o Compliance

Todos já ouvimos falar do famoso ‘jeitinho brasileiro’ ou mesmo já o praticamos. Todos podemos identifica o ‘jeitinho brasileiro’ quando o vê, mas quando nos perguntam o que ele é, não sabemos conceituar, não sabemos explicar.

O Jeitinho Brasileiro

Livia Barbosa, em sua obra ‘O jeitinho brasileiro: a arte de ser mais igual que os outros”, ela define o ‘jeitinho’ como “uma forma “especial” de se resolver algum problema ou situação difícil ou proibida; ou uma solução criativa para alguma emergência, seja sob a forma de conciliação, esperteza ou habilidade”. Ou seja é uma forma diferente da forma correta ou tradicional de se obter o resultado esperado para a situação.

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Roberto Barroso, em artigo escrito para o jornal O Globo RJ – Ética e jeitinho brasileiro – aponta que o jeitinho tem duas facetas: uma positiva e uma negativa:

[…]

Na sua faceta positiva, o jeitinho se manifesta em algumas características da alma nacional: uma certa leveza de ser, que combina afetividade, bom humor, alegria de viver e uma dose de criatividade. Este é o lado bom, que deve ser preservado.

O jeitinho constitui, também, um meio de enfrentar as adversidades da vida. Está muitas vezes ligado à sobrevivência diante das desigualdades sociais, das deficiências dos serviços públicos e das complexidades legislativas e burocráticas. Há um critério relativamente singelo para saber se o jeitinho é aceitável ou não: verificar se há prejuízo para alguém ou para o grupo social. Se a resposta for afirmativa, dificilmente haverá salvação.

A face negativa do jeitinho é bem conhecida de todos nós. Ela envolve a pessoalização das relações, para o fim de criar regras particulares para si, flexibilizando ou quebrando normas que deveriam se aplicar a todos. Esse pacote negativo inclui o improviso, a colocação do sentimento pessoal ou das relações pessoais acima do dever e uma certa cultura da desigualdade que ainda caracteriza a vida brasileira.

O improviso se traduz na incapacidade de planejar, de cumprir prazos e, em última análise, de cumprir a palavra. Vive-se aqui a crença equivocada de que tudo se ajeitará na última hora, com um sorriso, um gatilho e a atribuição de culpa a alguma fatalidade. O sentimento pessoal acima do dever se manifesta no favorecimento dos parentes e dos amigos, no compadrio, na troca de favores, «o toma lá dá cá». A cultura da desigualdade expressa a crença generalizada de que as regras são para os outros, para os comuns, «e não para os especiais como eu». Vem daí a permissão para furar a fila ou parar o carro na calçada.

[…]

Enquanto o ‘jeitinho brasileiro’ é somente uma forma de superar as diversidades, de encontrar maneiras criativas para contornar situações difíceis, estamos no campo da disponibilidade das ações humanos, por assim dizer. Estamos no campo em que não há prejuízo para ninguém, ao contrário, conseguimos alcançar benefícios com esse ‘jeitinho’.

O problema começa a acontecer quando esse ‘jeitinho brasileiro’ invade o campo das ações ilícitas e passa a fazer parte de um conjunto de atos associados à corrupção.

A corrupção

Sempre que pensamos em corrupção, logo vem à mente a ideia de políticos que recebem suborno, que criam empresas ou contratam com empresas fantasmas, que usam a máquina pública para obter vantagens indevidas. Mas o que é corrupção?

Segundo o site Significados, “Corrupção é o efeito ou ato de corromper alguém ou algo, com a finalidade de obter vantagens em relação aos outros por meios considerados ilegais ou ilícitos”. Por sua vez, o Código Penal também trata do tema na forma de crime e define:

Corrupção Passiva: Art. 317 – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem.

Corrupção Ativa: Art. 333 – Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício.

Dessa forma a corrupção para que seja considerada crime de corrupção, na sua forma passiva ou ativa, se caracteriza por solicitar/receber ou oferecer/prometer, respectivamente, vantagem indevida a alguém, sendo que um dos polos deve ser um funcionário público.

Mas nem toda corrupção envolve funcionário público, e não vai ser considerada crime. Quando uma pessoa que se sente mais apressada que outra, fura uma fila ou cola em uma prova, ela está, através do ato de corromper uma pessoa ou um bem, obtendo vantagem indevida e ilícita. Alguns atos do ‘jeitinho brasileiro’ são e serão atos de corrupção na sua versão negativa, pois tem como finalidade burlar uma determinada regra, tornando-se ilegais.

E qual a relação com o compliance?

O compliance, do termo comply, cumpri as normas é o extremo oposto da corrupção. É está em consonância com as normas, é agir com integridade. Gosto muito do conceito abordado pela Endeavor, ao afirmar que:

Compliance, em termos didáticos, significa estar absolutamente em linha com normas, controles internos e externos, além de todas as políticas e diretrizes estabelecidas para o seu negócio. É a atividade de assegurar que a empresa está cumprindo à risca todas as imposições dos órgãos de regulamentação, dentro de todos os padrões exigidos de seu segmento. E isso vale para as esferas trabalhista, fiscal, contábil, financeira, ambiental, jurídica, previdenciária, ética, etc.

Aquele que trabalha com compliance ou quer implantar um programa de compliance na sua empresa ou mesmo na sua atividade profissional, não pode ‘ajeitar as coisas à brasileira’, deve necessariamente fazer as coisas correta, da forma como devem ser. Atuar tendo como base o fato de que se não ocorrer da forma como eu quero dou um ‘jeitinho brasileiro’ é agir em desconformidade, principalmente se ‘jeitinho’ for negativo ou induzir a um ato de corrupção.

Entendo que não é fácil, mas é uma questão de mudança cultura, de mudança de atitude, de atuar de dentro para fora. Como queremos que nossos subordinados não se corrompam se na primeira oportunidade estamos pagando uma ‘cervejinha’ para não tomar uma multa de trânsito. Como podemos esperar que nosso filho atue de forma correta, se na hora de buscar ele na escola fazemos filha dupla.

Outro dia ouvi a seguinte conversa: um servidor público – que podia ser um empresário – encontrou o filho com uma caneta de um colega da escola e imediatamente o pai, consciente que é, mandou o filho devolver a caneta ao colega, mas concluiu com a seguinte frase: filho é errado pegar as coisas dos outros, se você precisa de alguma coisa, eu trago do trabalho/empresa.

Não posso agir em conformidade e praticar um ato de corrupção ao mesmo tempo. Aprender a seguir as regras – qualquer que seja – é um dos princípios básicos do agir em compliance. Desta forma, não cabe compliance quando atuamos com o famoso ‘jeitinho brasileiro’.

Leia também:

Como efetivar um bom programa de Compliance

Compliance: Direito Empresarial x Direito Penal

Referências:

BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro: a arte de ser mais igual que os outros. Rio de Janeiro: Campus, 2006.

BARROSO, Luiz  Roberto. Ética e jeitinho brasileiro. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rio/artigo-etica-jeitinho-brasileiro-21784078>. Acesso em: 03 nov. 2019.

BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 03 nov. 2019.

ENDEAVOR. Prevenindo com o Compliance para não remediar com o caixa. Disponível em: <https://endeavor.org.br/pessoas/compliance/>. Acesso em: 03 nov. 2019.

SIGNIFICADOS. Corrupção. Disponível em: <https://www.significados.com.br/corrupcao/>. Acesso em: 03 nov. 2019.

Sobre a Autora:

Nadialice Francischini de Souza.

Advogada. Docente. Doutora em Direito pela UFBA, na linha de Relações Sociais e Novos Direitos, estudando a Governança Corporativa e o Direito de Propriedade.

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