Unificação do Direito Privado sob a ótica empresarial
UNIFICAÇÃO DO DIREITO PRIVADO – Sob a ótica empresarial
Em 10 de janeiro de 2002, foi publicada a Lei n. 10.406, que instituiu o Código Civil Brasileiro e revogou o Código Civil, então vigente desde 1916, e a primeira parte do Código Comercial de 1850. Nascendo em pleno século XXI, se submeteu a muitos elogios e críticas.
Entre os que elogiam o Código Civil destaco o entendimento de José Lamartine Corréa de Oliveira, quando analisou o projeto do Código hoje em vigor, para quem: “Mereceu elogios a preservação da Parte Geral e a ordem dos livros da Parte Especial […], inclusive do ponto-de-vista didático – o que tem feito prevalecer no ensino jurídico – à ordem adotada pelo Código vigente”. Bem como
a louvável preocupação de respeito ao essencial do trabalho de Clóvis Beviláqua fez com que a estrutura básica do Código vigente fosse respeitada. […] Declaradamente buscou o Anteprojeto antes “sentido operacional do que conceitual” […] e uma superação do individualismo que se concretizou, a exemplo do Código luso, pela grande autoridade conferida ao prudente arbítrio do juiz e pelo “apelo a valores como os de boa-fé, eqüidade, probidade, finalidade social do Direito, equivalência de prestações etc.” No fundo, portanto, em termos de pensamento inspirador, filia-se o Código à filosofia do Estado intervencionista, que procura, através do apelo ao ético, supostamente humanizar a estrutura econômica de raiz neo capitalista.[1]Este também é o entendimento de Miguel Reali, que compreende que a maior contribuição do Código Civil vigente é a incorporação de “valores ético-jurídicos da nossa época, operando a necessária passagem de um ordenamento individualista e formalista para outro de cunho socializante e mais aberto à recepção das conquistas da ciência e da jurisprudência”.[2]
Entre os que criticam, destaco a formulada por Gustavo Tepedino que sustenta que o Código de 2002
peca, a rigor, duplamente: do ponto de vista técnico, desconhece as profundas alterações trazidas pela Carta de 1988, pela robusta legislação especial e, sobretudo, pela rica jurisprudência consolidada na experiência constitucional da última década. Demais disso, procurando ser neutro e abstrato em sua dimensão axiológica, como ditava a cartilha das codificações dos Séculos XVIII e XIX, reinstitui, purificada, a técnica regulamentar.[3]Analisando o caráter tímido do diploma civil, Antonio Junqueira de Azevedo, que já salientava, antes da sua publicação que: “O Projeto serve-se também largamente de noções vagas (por exemplo, função social dos contratos) e pretende a todo custo manter a concepção de unidade do direito privado”.[4]
Verifica-se, neste pequeno punhado apresentado, que tanto os elogios quanto as críticas tratam da inserção das cláusulas gerais. Os que o elogiam afirma que tal presença, por si só, já representa um avanço no direito civilista, refletindo a tendência do Estado Social. Os que criticam, fundamentam-se no fato de que o Código por si só é uma estrutura rígida e que não está de acordo com a pluralidade social, ademais, o mesmo foi tímido na incorporação dos anseios sociais, mantendo, principalmente no tocante à propriedade o pensamento individualista do Estado Liberal.
Foram tecidas outros elogios e criticas além da que aqui exponho, entretanto, não é o objeto do presente trabalho estudar o Código Civil de 2002, motivo pelo qual, preocuparei em analisar estritamente a questão que envolve o direito empresarial. E neste tocante, merece destaque a unificação do direito privado, com a inserção da disciplina empresarial no corpo do seu texto, mais especificamente, no Livro II – Do Direito da Empresa.
Este fato também gerou muitos aplausos e vaias. Os primeiros relacionados com o fato de a legislação privada ter incorporado a teoria italiana da atividade empresarial, deixando de lado a teoria francesa dos atos comerciais. As críticas vieram, principalmente, da própria unificação do direito privado, refletindo uma divisão acadêmica e jurídica, que há muito já existia. Classicamente, o a dicotomia entre a codificação única ou não existe desde os estudos de Cesare Vivante e Alfredo Rocco, que passo a explicar agora.
Cesare Vivante alegou, no início do século XX, que, sendo o Direito Comercial parte do Direito Privado, tal como o Direito Civil, era “difícil fazer uma separação nítida entre a matéria regulada pelo Código civil e regulada pelo Código comercial”. Ele fundamenta a sua alegação no fato de que o conteúdo do direito comercial estava se alargando, devido ao aparecimento de novas formas econômicas[5]. E finaliza o seu entendimento afirmando que tal divisão só se sustenta em virtude da origem histórica dos dois ramos, bem como devido ao caráter didático das disciplinas a ela relacionadas[6].
Grande crítico de Cesare Vivante, Alfredo Rocco é contrário a teoria da unificação do direito privado, e fundamenta-se principalmente no conteúdo próprio do direito comercial. Ele diz que há duas espécies de normas de direito comercial: (1) normas que derivam da legislação civil, mas ganham contorno especial face as relações especiais e (2) normas totalmente novas, decorrentes de relações sem correlação nas relações civis. Tanto da diferença de tratamento nas primeiras normas, quando no tratamento complemente novo dado às segundas normas, ele retira o conteúdo próprio do Direito Comercial, que impede a unificação dos dois ramos.[7]
Importante destacar que, apesar de ser contrário a unificação, Alfredo Rocco não rejeita o fato de que o direito civil é uma fonte do direito comercial. E afirma que este deve ser usado para suprir as lacunas da legislação comercial, tais como os costumes e os princípios gerais de direito.[8]
Após embate Alfredo Rocco, Cesare Vivante se retratou, em 1919, afirmando “ser impossível a unificação das obrigações e que estava convencido da necessidade da autonomia do Direito Civil e do Direito Comercial”[9]. Isso ocorreu no momento em que foi nomeado para presidir a Comissão do projeto de um novo Código Comercial para a Itália, que acabou por não ser concluído[10]. Contudo, em 1942, foi promulgado o Código Civil Italiano, que primeiramente unificou as matérias, abordando o tema comercial/empresarial no Quinto Livro, Título II, denominado “Del Lavoro Nell’Impresa” [11].
No Brasil, o tema também não é recente, pois já era aventado desde o projeto de Código Civil de Teixeira de Freitas, conforme já salientado, o que não logrou êxito à época, sendo concretizada somente quando da publicação do Código Civil, em vigor desde janeiro de 2003. A fundamentação encontra-se no Direito das Obrigações, pois, seria este o elo de ligação dos dois ramos, não justificando a existência de duas normas distintas[12]. Neste sentido, destaco o pensamento de Dora Martins de Carvalho, para quem
os princípios, as normas, as leis gerais relativas aos indivíduos, sistematizadas em códigos, oferecem vantagens excepcionais, tais como: reunião das matérias do Direito Privado do País num só livro, facilitando a consulta, a coordenação e combinação dos princípios gerais de forma unitária, evitando desencontro; a igualdade e generalidade das normas propiciadoras da identidade de tratamento; obstrução à confusão que, naturalmente, pode emergir, de multidão desnorteada de leis etc.[13]A despeito do entendimento favorável, há muito estudiosos que são contra a unificação do direito privado, e por inúmeras razões[14].
Em destaque nas críticas e, também, defensor da existência de um Código Empresarial independente, está Fábio Ulhoa Coelho que ressalta que a unificação do direito privado foi um grande erro. Isso porque, ao fazê-lo, o legislador ignorou totalmente a especificidade do direito empresarial, de seus princípios próprios, fazendo com que esses fossem esquecidos ou desconsiderados, e privando a ordem jurídica de um avanço econômico necessário para a integração ao processo de globalização[15].
A existência de conteúdos distintos entre o Direito Civil e o Direito Empresarial já tinha sido alvo das discussões da Itália no final do século XIX e início do século XX, mas a questão do engessamento das disposições empresariais somente surgiu com a análise do Estado Social e a necessidade de normas que atenda aos anseios sociais. Ou seja, normas plurais, que possam prever não só os aspectos materiais, mas também os aspectos administrativos, penais, entre outros.
Luiz Antonio Guerra da Silva, afirma que, não decorre da pura unificação do direito privado em si mesmo analisada, mas sim do fato de que “a pujança dada a velocidade com que os negócios mercantis passaram a ser realizados, sem as amarras e formas exigidas pelo direito civil”. E que
a justificativa da inclusão de parte da matéria mercantil no novo Código Civil, situação inédita no ordenamento jurídico nacional, deve-se exclusivamente a tentativa, sem sucesso, do engessamento do Direito Comercial, como forma de minimizar a crise e prestigiar o Direito Civil (a grande crise da mercantilização do direito civil, no século XX), tudo a partir da unificação das obrigações civis e mercantis, como previsto na Lei 10.406/2002.[16]Além da questão da velocidade como as relações empresariais são travadas, deve-se observar também que, a despeito da tentativa, a unificação do direito privado não foi completa. Há inúmeras normas de cunho unicamente empresarial que não foram abarcados pelo diploma civil, tais como a matérias dos títulos de crédito em espécie (apesar da parte geral está inserida no Código Civil, há inúmeras leis que regulam a matéria, como a Lei n. 7.357/85 – Lei do Cheque –, a Lei n. 5.474/68 – Lei das Duplicatas –, entre outras), a matéria falimentar – Lei n. 11.101/2005, a própria regulamentação das sociedades anônimas – Lei n. 6.404/76, e toda a regulamentação sobre propriedade industrial e intelectual.
Neste sentido, importa transcrever o pensamento de Luiz Antonio Guerra da Silva que para que, o “Direito de Empresa é mais amplo que os conceitos de empresário ou sociedades simples ou empresária, nos variados modelos societários, ou estabelecimento, ou, ainda nome empresarial, prepostos e escrituração contábil”. E completa:
a inserção de parte da matéria comercial no Código Civil restou absolutamente pífia, porquanto a um só tempo não unificou o direito privado e não revogou o Código Comercial de 1850, deixando fora do novo diploma outros institutos mercantis, com exceção da pífia Teoria Geral dos Títulos de Crédito e do desatualizado Direito Societário (Direito da Empresa) e nem tampouco retirou a autonomia substancial, acadêmica e formal ou legislativa do Direito Comercial. Em verdade, a reforma como ocorrida, especificamente no direito mercantil, não se justificou; ao revés, trouxe maior complicação didática ao estudo do Direito Comercial. [17]Uma terceira corrente de cunho conciliador também de desenhou. Esta corrente reconhece e aceita a inserção da disciplina empresarial dentro do Código Civil, mas ressalta que isso não implicou a unificação dos dois ramos, passando a disposição civil a ter conotação de disposição privada.[18] Antonia Longoni Klee afirma expressamente que o
grande valor de nosso novo Código, mormente se comparado com o seu congênere italiano, está, nessa matéria, na adstrição à diretriz sistemática: não regulando o Direito do Trabalho, que no Brasil tem diploma próprio, o Código promove a sistematização da disciplina da empresa sem cindir as suas regras das demais normas de Direito Privado nem confundi-las com as especificidades da disciplina das relações de emprego.[19]Tanto os argumentos contrários como favoráveis para a unificação do direito privado são fortes e merecem reflexão, entretanto entendo que o Direito Empresarial tem conteúdo próprio, autônomo e independente do Direito Civil, e que a codificação única não implica em uma unificação real do Direito Privado.
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Notas