Visão Histórica dos Direitos Fundamentais
Os direitos fundamentais sob a perspectiva da Declaração de Independência dos Estados Unidos e da Declaração dos Direitos da Revolução Francesa
Os direitos fundamentais do homem e do cidadão são discutidos pelos sistemas jurídicos desde a antiguidade[1], entretanto, a fim de não me estender demasiado na análise histórica – que não é o foco principal – optei por fazer um recorte a partir do período moderno, iniciado o estudo com a Revolução Francesa e os seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Para tanto, elegi dois importantes documentos, que são considerados pontos de virada história[2]: a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América do Norte de 1776 e a Declaração de Direitos da Revolução Francesa de 1789.
Sobre os documentos históricos, o primeiro tem importância pelo fato de que foi o “primeiro documento político que reconhece, a par da legitimidade da soberania popular, a existência de direitos inerentes a todo ser humano, independentemente das diferenças de sexo, raça, religião, cultura ou posição social”[3]. Já a segunda, reproduzindo os ideários da revolução francesa, prever no artigo 1º que “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum”[4].
A importância desses documentos, principalmente do segundo, foi destacado por Noberto Bobbio ao afirmar que “esse ato representou um daqueles momentos decisivos, pelo menos simbolicamente, que assinalam o fim de uma época e o início de outra, e, portanto, indicam uma virada história do gênero humano”[5]. Neste sentido, salienta Fábio Konder Comparato, ela se destaca por ter sido “em si mesma o primeiro elementos constitucional do novo regime político”[6] instaurado pós Revolução.
Ambos os documentos reconhecem a necessidade de se tutelar valores individuais como a liberdade e a igualdade. Mas “a grande diferença [entre eles] está no fato de que o texto francês não segue a visão individualista das declarações americanas e confia muito mais na intervenção do legislador enquanto representantes de interesse geral”[7].
Neste tocante, Noberto Bobbio explana que:
No plano histórico, sustento que a afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica da formação do Estado moderno, na representação da relação política, ou seja, na relação Estado/cidadão ou soberano/súbito: relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos não mais súbitos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondência com a visão individualista da sociedade, segundo a qual, para compreender a sociedade, é preciso partir de baixo, ou seja, dos indivíduos que se compõem, em oposição à concepção orgânica tradicional, segundo a qual a sociedade como um todo vem antes dos indivíduos. […][8]
Em virtude de sua importância história, estes documentos apresentados são analisados sob três aspectos: o político, o filosófico e o teórico.
O primeiro está fundado na questão da soberania, entendido como o fato de o Estado ser encarado como um sujeito unitário capaz de manifestar sua vontade e realizar ações concretas, não admitindo – teoricamente – interesses contrários ao seu[9]. Toda a ordem jurídica, tanto no âmbito privado quanto no público foram pensados sob o foco de romper com os ditames absolutistas que vigoraram durante a Idade Média, proporcionando a burguesia, então em surgimento, uma maior segurança para desenvolver-se. E, nesta perspectiva, a proclamação desses documentos desencadearam a “mudança radical nos fundamentos da legitimidade política”[10]. Isso porque, proporcionou-se “[…] a emancipação histórica do indivíduo perante os grupos sociais aos quais ele sempre se submeteu: a família, o clã, o estamento, as organizações religiosas”[11].
No segundo aspecto, o filosófico, verifica-se a ideia de superação dos ideais jusnaturalistas e juspositivistas, visto que ao invés de um “fundamento divino ou próprio da natureza humana, os valores materiais referidos vieram manifestados justamente na figura dos direitos fundamentais, fontes da importante ênfase humanística do Direito Constitucional”[12]. Neste sentido salienta Fábio Konder Comparato que o fundamento teórico dos direitos fundamentais está no fato de que “[…] todos os seres humanos têm direito a ser igualmente respeitados, pelo simples fato de sua humanidade, nasce vinculada a uma instituição social de capital importância” [13].
Gilmar Ferreira Mendes, não concordando com a superação de tal dicotomia e aponta como fundamento filosófico para os direitos fundamentais o seguinte esquema:
[…] para os jusnaturalistas, os direitos do homem são imperativos do direito natural, anteriores e superiores à vontade do Estado. Já para os positivistas, os direitos do homem são faculdades outorgadas pela lei e reguladas por ela. Para os idealistas, os direitos humanos são ideias, princípios abstratos que a realidade vai acolhendo ao longo do tempo, ao passo que, para os realistas, seriam o resultado direto de lutas sociais e políticas.[14]
O terceiro e último aspecto, a teórica, tem fulcro na nova ordem constitucional instaurada, que permitiu que esta irradiasse seus efeitos materiais para os demais ramos do direito[15]. Ela possui relação intima “[…] com a formação do chamado ‘novo constitucionalismo’”[16].
Essa análise permite que se entenda a aplicação dos direitos fundamentais tanto na concepção clássica – indivíduo sendo protegido do poder estatal –, quando na concepção horizontal – a incidência destes na proteção do indivíduo dentro das relações privadas.
[1] COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 10. Neste sentido também MENDES, Gilmar Ferreira, et.al. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 104-106.
[2] COMPARATO, Op. Cit., p. 10.
[3] Ibidem, p. 10.
[4] DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO DE 1789. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2012.
[5] BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 79.
[6] COMPARATO, Op. Cit., p. 10.
[7] DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 25.
[8] BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 04.
[9] VICTORINO, Fábio Rodrigo. Evolução da Teoria dos Direitos Fundamentais. In Revista CEJ, Brasília, Ano XI, n. 39, out./dez. 2007, p. 11.
[10] COMPARATO, Op. Cit., p. 10.
[11] Ididem, p. 10.
[12] VICTORINO. Op. Cit., p. 12.
[13] COMPARATO, Op. Cit., p. 10.
[14] MENDES. Hermenêutica. Op. Cit., p. 113.
[15] VICTORINO. Op. Cit., p. 13-14.
[16] Ibidem, p. 11.