Guest Post: O Novo Código Comercial e a Invocação aos Princípios de Direito

Artigo convidado: por Jaivan Dantas de Morais

1 INTRODUÇÃO 

O ordenamento jurídico e a sociedade brasileira estão prestes a receber um novo Código Comercial. Atualmente, o Direito de Empresa é regulado pelo Código Civil (Livro II: art. 966 ao art. 1.195) e por legislação extravagante. Nada obstante, já o fora por um diploma autônomo: o Código Comercial, instituído pela Lei nº 556, de 25 de junho e 1850, hoje revogado parcialmente pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Revogada justamente a Parte Primeira, a qual dava conta do regramento inerente ao “Comércio em Geral”. A leitura do Projeto de Lei 1.572/2011 (que institui o novo Código Comercial) é atraente, pois as temáticas veiculadas em sua redação são pautadas com certa precisão, o que demonstra, ressalvadas algumas exceções, boa técnica legislativa. Dentre os dispositivos do projeto de lei em análise, merece realce o art. 8º, cuja redação registra: “Nenhum princípio, expresso ou implícito, pode ser invocado para afastar a aplicação de qualquer disposição deste Código ou da lei”. Com efeito, este texto reclama detida análise de seu sentido e alcance. É o objeto deste estudo. Todavia, não se desconhece a impossibilidade de esgotá-lo. O art. 8º, a título de esclarecimento preliminar, encerra o Título I, Livro I, do Projeto de Lei 1.572/2011, reservado a disciplinar os “princípios do direito da empresa”. São eles, nos exatos termos do art. 4º: liberdade de iniciativa, liberdade de competição e, finalmente, função social da empresa. São apontados, pelo diploma “nascituro”, como princípios gerais do direi- to de empresa. Sendo assim, pretende-se estudar o supramencionado art. 8º à luz da sistemática jurídica vigente, notadamente os valores que instruem o ordenamento. Busca-se, com isso, avaliar sua plausibilidade considerando sua utilidade prática no contexto das relações jurídico- empresariais da atualidade.
2 CONCEITO DE PRINCÍPIO E O ART. 8º DO PROJETO 

Os princípios são mandamentos que instruem a vida do Direito há muito tempo. Eles se manifestaram durante toda a história jurídica do ser humano, variando apenas quanto ao conteúdo e aplicação, pois se conformavam ao contexto histórico-social em que incidiam. O
jusnaturalismo, o positivismo e o pós-positivismo referendaram os princípios como uma das modalidades de suas expressões, porém cada um destes segmentos dispensava-lhes tratamento diferenciado, no plano valorativo. Em epítome, no jusnaturalismo eram alocados no campo da abstração, vistos como ideais de justiça, contudo, com normatividade nula, o que impossibilitava sua aplicação ao caso concreto. No positivismo, adquiriram normatividade, todavia, somente eram aplicados de forma subsidiária, em caso de lacuna legal. No pós-positivismo, os princípios galgaram cará- ter axiológico e normativo, logo, passaram a integrar o ordenamento jurídico, com força normativa. Desse modo, pode-se afirmar que os princípios nunca foram tão valorizados como hodiernamente, isto porque, principalmente na ordem jurídica brasileira, são alocados na condição de vetores nucleares que instruem toda a sistemática legiferante, desde a elaboração e aplicação de diplomas normativos, até o controle de constitucionalidade difuso e concentrado operado perante o Poder Judiciário. Segundo remansosa doutrina, violar um princípio é mais grave do que violar uma lei. Vale dizer, ofender as diretrizes consagradas por um mandamento principiológico afronta o campo jurídico no todo, e não apenas em parte. Concebe-se atualmente que princípio é norma, cuja carga valorativa orienta a missão interpretativa do hermeneuta, razão pela qual Robert Alexy afirmou que “toda norma é ou uma regra ou um princípio”. E continua o mestre alemão ensinando que:
Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. (2012, p. 90).
Demais disso, princípios expressos são aqueles registrados vernaculamente na redação legal, a exemplo do princípio da livre iniciativa, da liberdade de competição e da função social da empresa. Não se restringem, contudo, aos esculpidos nos preceptivos do projeto, mas também se incluem aqueles de ordem constitucional, mormente os que têm aplicação direta no âmbito empresarial. A contrario senso, princípios implícitos são os que, mesmo angariando reconhecida existência, não ostentam expressa disposição literal no plano normativo, v.g., o princípio da lealdade constitucional.
Nos termos do art. 4º, são três os princípios gerais que orientam a atividade mercantil: a livre iniciativa, a liberdade de competição e a função social da empresa. Ora, como se trata de uma projeção tendente a estatuir um diploma infraconstitucional, sua submissão aos co- mandos de ordem constitucional é induvidosa. Por isso, além destes princípios, a Constituição do Brasil de 1988 enumera outros, quais sejam: a) soberania nacional; b) propriedade privada; c) função social da propriedade; d) livre concorrência e livre iniciativa; e) defesa do consumi- dor; f) defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; g) redução das desigualdades regionais e sociais; h) busca do pleno emprego; e, derradeiramente, i) tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Além disso, o parágrafo único do art. 170 da Constituição do Brasil de 1988 corrobora: “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei” (art. 1º, IV, e art. 170, CF/88). Mesmo assim, o art. 8º do PL 1572/2011 tenta positivar uma orientação segundo a qual “Nenhum princípio, expresso ou implícito, pode ser invocado para afastar a aplicação de qualquer disposição deste Código ou da lei”. Percebe-se que o preceptivo em tela pretende excluir qualquer questionamento que tenda a afastar normas, explicitas ou implícitas, do Código a ser deflagrado, bem como de qualquer outra legislação comercial, quando a discussão girar em torno da prevalência dos princípios sobre o direito legislado. Este texto provoca mui- ta confusão na ordem das ideias. O intento dele pode causar sérios transtornos no processo de aplicação da legislação comercial aos múltiplos casos concretos.
3 O NOVO DIREITO COMERCIAL E A VALORIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS 

Como já ressaltado, o Projeto de Lei 1.572/2011, em trâmite no Congresso Nacional, que objetiva instituir o novo código comercial, é inaugurado por um Título que apresenta os princípios valorados em essência pela ordem mercantil brasileira, os quais também encontram agasalho na Carta Magna vigente. Todavia, no desfecho da apresentação, o Código encerra o seu título vestibular com o art. 8º. De início, o preceptivo questionado usa o pronome indefinido “nenhum”. É cediço que qualquer ramo do direito é orientado por princípios próprios, peculiares, integrantes de sua particular forma de manifestação dentro do acervo cognitivo oferecido pela ciência, constituindo-se verdadeiro patrimônio valorativo indicador do sistema protecionista visado pelo ramo ao qual pertence.
É que cada direito não é mero agregado de normas, porém um conjunto dotado de unidade e coerência – unidade e coerência que repousam precisamente sobre os seus (dele = de um determinado direito) princípios. Daí a ênfase que imprimi à afirmação de que são normas jurídicas os princípios, elementos internos do sistema; isto é, estão nele integrados e inseridos (GRAU, 2010, p. 165).
A interpretação do direito é dominada pelos princípios. O direito comercial não pode retroceder neste sentido, de modo a não cultivar esta tão prestigiada e bem sucedida forma de manifestação das ciências jurídicas. Infeliz a literalidade esculpida no art. 8º do projeto, redundando em total dissonância com a lógica global do ordenamento. Não se compadece em guardar harmonia com os direcionamentos outorgados pela Constituição de 1988, bem como relativamente às suas próprias normas, já que o art. 4º enumera os princípios vetores do diploma legal que pretende instaurar. Este último artigo, oportuno lembrar, enumera os princípios gerais do direito comercial. Significa afirmar que não ignora a existência de princípios outros peculiares a cada instituto integrante desta disciplina. Ora, sendo assim, desarranjado afirmar que nenhum princípio pode ser base de questionamento tendente a afastar normas deste seguimento literário. Ante uma análise acurada da proposta, várias indagações não calam o hermeneuta: qual o alcance do vernáculo “princípio” insculpido na norma? “Nenhum princípio”! Mesmo os constitucionais? E os enumerados no art. 4º, serão atingidos? Outrossim, e que lei é essa referida pelo Código? Seria uma lei comercial? Seriam abrangidas as atuais ou as vindouras, ou ambas? E se uma lei ofendesse princípio de origem constitucional ou mesmo legal, ou conflitasse com outra, como se resolveria o impasse? O direito comercial passará a ignorar a razoabilidade, a proporcionalidade, a ponderação dos princípios, quando da aplicação de suas normas? Como se não bastasse, o mesmo dispositivo explica que independe da forma como tais princípios estão inseridos na discussão, vale dizer, sejam expressos sejam implícitos, deles o intérprete não pode lançar mão com o propósito de afastar o que os estatutos de natureza comercial positivam. Fábio Ulhoa Coelho, quando coordenou o Grupo de Estudos Preparatórios para o 1º Congresso de Direito Comercial, mostrou-se indignado com a postura atual do direito comercial em relação aos princípios. Na ocasião, falou o grande mestre:
Os valores que compõem a “ideologia” do direito comercial correm, hoje, o risco de desaparecerem, no emaranhado da complexa sociedade contemporânea. Se não insistirmos que a proteção jurídica feita ao investimento aproveita não apenas ao investidor, em seus interesses individuais, mas principalmente a sociedade como um todo, aos poucos perder-se-á, no espírito dos juízes e outros membros da comunidade jurídica os valores de que depende o direito comercial para sobreviver. Sob o ponto de vista técnico, os valores de uma disciplina jurídica expressam-se por meio dos princípios próprios dela […] Precisamos reverter o processo de lento desaparecimento dos valores do direito comercial, realimentando a ideologia desta disciplina. Os instrumentos neste processo são a realização de eventos periódicos e representativos […] que identifiquem os princípios do direito comercial e os aprofundem, mostrando como devem ser entendidos atualmente, em cotejo com a ideologia dos demais ramos do direito que se a- vizinham.
Impressionante como o art. 8º do projeto levanta forte grau de instabilidade e insegu- rança. O Direito Comercial não merece isto. Seu intento ultrapassa até mesmo a hodierna manifestação hermenêutica largamente utilizada em sede de interpretação constitucional e legal. A própria Constituição Federal de 1988 ressalva que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, além daqueles elencados em tratados internacionais de que o Brasil faça parte (art. 5º, § 2º). Ora, um Código (lei infraconstitucional) pode impor tamanha exclusão? Logo, o art. 8º do projeto deve ser revisto antes mesmo de entrar na pauta de votação nas Casas do Congresso Nacional. Não merece, pois, prosperar.
4 CONCLUSÃO  
Portanto, tendo em vista o perigo que esta norma representa, algumas providências de- vem ser tomadas durante o período de tramitação. Aliás, nunca se deve olvidar que o legisla- dor, ao disciplinar uma determinada situação, está comprometido a inovar a ordem, bem como regularizá-la dentro dos cotornos reclamados pela realidade contemporânea. O art. 8º do projeto é despiciendo. Não veicula nenhum benefício social. Não inova a ordem jurídica posta. Ao contrário, pode causar transtornos no processo de interpretação e aplicação do direito. Logo, duas providências alternativas são sugeridas aqui: (a) ou excluí-lo definitiva- mente do projeto, pelas razões acima expostas; ou reelaborá-lo, conferindo-lhe uma redação condicente com a atual sistemática do direito. Se estas medidas não forem adotadas a tempo e a contento, provavelmente, a norma será questionada judicialmente, em sede de controle abstrato ou concentrado de constitucionalidade, a fim de que lhe seja conferida interpretação conforme a Constituição.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª Ed. Malheiros, 2012.
BARROSO, Leonardo Alves. A força normativa dos princípios. Série aperfeiçoamento de magistrados 11, Curso de Constitucional, Normatividade Jurídica. Disponível em: <http://www.emerj.tjrj.jus.br/serieaperfeicoamentodemagistrados/paginas/series/11/normativi dadejuridica_118.pdf>. Acesso em: 30.04.2013.
BETIOLI, Antonio Bento. Introdução ao Direito: lições de propedêutica jurídica. 6º Ed. São Paulo: Letras e Letras,1995.
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 22ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
________. Princípios de Direito Comercial. In: GEP – Grupo de Estudos Preparatórios do Congresso de Direito Comercial, 2011, São Paulo. Disponível em: <http://www.congressodireitocomercial.org.br/2011/images/stories/pdfs/gep2.pdf>. Acesso em: 25.04.2013.
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 14ª Ed. São Paulo: Ma- lheiros, 2010.
HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Sergio An- tonio Fabris Editor, 1997.
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 29ª Ed. 1º Vol. São Paulo: Saraiva, 2010.

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