Mínimo existencial de R$ 303,00?

Não é tão simples!

Foi assinado em 26 de julho de 2022 o Decreto n. 11.150 que estabeleceu o mínimo existencial como 25% do salário mínimo, correspondente, atualmente a R$ 303. Isso para fins de aplicação e verificação de superendividamento.

A questão do superendividamento e a manutenção do mínimo existencial perpassa, também, pela discussão da concessão de créditos de forma responsável pelas instituições financeiras, mas isso não será aprofundado aqui e você pode encontrar na minha obra CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO: LEI N. 14.181 COMENTADA.

A proteção do superendividamento e do mínimo existencial foi inserido no Código de Defesa do Consumidor no artigo 6º, XI e XII, pela Lei n. 14.181/2021, estabelecendo:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

XI – a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;

XII – a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;

O estudo do mínimo existencial está relacionado com a dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição Federal, no Artigo 1º, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Deve-se assegurar a todos o mínimo digno, “Não unicamente do aspecto patrimonial, mas sim de assegurar a pessoa o pleno exercício dos direitos da personalidade” (LISBOA. 2012).

O preenchimento desse conceito, no sistema jurídico brasileiro perpassa, como apontado por Marcelo Novelino Camargo (2007, p. 124-125), pela associação da dignidade com outros direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, como a saúde, a educação fundamental, a moradia entre outros direitos fundamentais. Neste sentido, também, Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo (2012, p. 173-178) destacam que todos os direitos sociais compõem um núcleo de direitos mínimos que devem ser assegurados a todas as pessoas.

Quando correlacionamos o mínimo existencial e o direito do consumidor, temos que ter em mente o acesso aos bens de consumo da vida moderna, como bem destaca Diógenes Faria de Carvalho e Frederico Oliveira Silva (2018, p. 379):

[…] o consumo de bens essenciais (comida, água, vestuário básico, medicamentos, moradia, transporte, entre outros) é, modernamente, um direito da humanidade, pois é a forma mais comum de acesso aos direitos integrantes de um piso vital (e, consequentemente, do mínimo existencial).

Nesse sentido também Bruno Miragem (2021) afirma que se trata “de proteger-se a parcela dos rendimentos do consumidor necessárias à satisfação das suas necessidades básicas e as de sua família”.

Quando se estuda finanças pessoais é bastante popularizada a regra do 50 – 30 – 20, que consiste em separar 50% de tudo o que uma pessoa ganha para as suas despesas com itens básicos e fixos, como moradia, alimentação, transportes; 30% dos seus ganhos devem ser investidos; e 20% da sua renda devem podem ser direcionados para divertimentos e outros gastos que proporcionam prazer imediato.

Analisando as regras financeiras e a determinação de mínimo existencial para fins de consumo no mundo contemporâneo e superendividamento, posso afirmar que, é uma vida não digna aquela onde o consumidor comprometeu mais de 50% da sua renda com dívidas.

Se tivermos como base o salário mínimo brasileiro, entre seus muitos aspectos e discussões, principalmente considerando que ele já seria o mínimo para a manutenção de uma vida digna para o trabalhador, o valor estabelecido no decreto presidencial é muito ínfimo. Nesse sentido, salientou Arthur Rollo (apud Higídio, 2022) ao ressaltar que “a expressão ‘salário mínimo’ já passa a ideia de um mínimo existencial, e portanto esta deveria ser a base. Também seria possível usar os critérios de pobreza adotados pelas Defensorias Públicas, que chegam a 1,5 salário mínimo”.

Ione Amorim, coordenadora do Programa de Serviços Financeiros do Idec (apud GIMENES, 2022) salienta que: “Agora pense se isso é possível. Como pagar o aluguel, a conta de energia, de água, o condomínio, comprar comida, água para beber, gastos básicos com saúde e educação com R$ 300,00? É isso que o governo Bolsonaro diz ser factível”.

Em contrapartida, a Federação Brasileira de Bancos – Febraban (apud GIMENES, 2022), também em nota, afirmou que o decreto “trouxe definições importantes e necessárias para a implementação da Lei do Superendividamento”. Para a entidade, ter um mínimo existencial igual para todos os brasileiros traz segurança jurídica.

São duas visões sobre um mesmo ponto. Contudo, a definição do mínimo existencial não pode ser lançado sem maiores discussões com a sociedade civil e sem discutir a questão do fornecimento do crédito responsável, como já salientado.

Referências:

  • CARVALHO, Diógenes Faria de; SILVA, Frederico Oliveira. Superendividamento e mínimo existencial: teoria do reste à vivre. In Revista de Direito do Consumidor. Vol. 118. ano 27. p. 363-383. São Paulo: RT, jul.-ago. 2018.
  • CAMARGO, Marcelo Novelino. O conteúdo Jurídico da Dignidade Humana. In Leituras Complementares de Direito Constitucional. 2. ed. Salvador: Podvim, 2007.
  • GIMENES, Erick. Governo define em decreto que R$ 303 é o necessário para endividado viver. Disponível em: <https://www.jota.info/jotinhas/governo-define-em-decreto-que-r-303-e-o-necessario-para-endividado-viver-28072022>. Acesso em: 27 jul. 2022.
  • HIGÍDIO, José. Decreto de Bolsonaro estabelece mínimo existencial de R$ 300. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2022-jul-27/decreto-bolsonaro-estabelece-minimo-existencial-300>. Acesso em: 29 jul. 2022.
  • LISBOA, Roberto Senise. Dignidade e solidariedade civil-constitucional. In Revista de Direito Privado. Vol. 42. Abr/2010. São Paulo: Revista dos Tribunais. Disponível em: <http://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0ad6007a00000137c76545dd555352f9&docguid=Ia603d2c0f25311dfab6f010000000000&hitguid=Ia603d2c0f25311dfab6f010000000000&spos=25&epos=25&td=90&context=&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em: 07 jun. 2012.
  • MIRAGEM, Bruno. A lei A lei do crédito responsável altera o Código de Defesa do Consumidor: novas disposições para a prevenção e o tratamento do superendividamento. In. Migalhas. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/348157/a-lei-do-credito-responsavel-altera-o-codigo-de-defesa-do-consumidor>. Acesso em: 24 jul. 2021.
  • SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do Possível, Mínimo Existencial e Direito à Saúde: algumas aproximações. In Direitos Fundamentais. N. 1, Out./Dez. 2007. Disponível em: <http://www.dfj.inf.br/Arquivos/PDF_Livre/DOUTRINA_9.pdf>. Acesso em: 11 jul. 2012.

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